Texto de Antonio Carlos Popinhaki
Os indígenas Kaingangs, também chamados erroneamente de botocudos ou bugres pelos colonizadores, eram os verdadeiros donos das terras do planalto catarinense. Sua história, no entanto, foi marcada pela violência, expropriação e marginalização perpetradas por tropeiros, bandeirantes e fazendeiros que invadiram seus territórios. A partir da ótica dos Kaingangs, é possível entender como eles foram os mais prejudicados nesse processo de colonização.
A vida dos Kaingangs antes da invasão caracteriza-se por uma vida em harmonia com a natureza, estabelecendo suas aldeias próximas a rios como o Canoas e o Marombas, onde pescavam com técnicas sofisticadas, como o uso de armadilhas chamadas “pāri”. Eles eram exímios artesãos, produzindo ferramentas de pedra, cerâmicas e cestos e esteiras de taquara. Sua alimentação era baseada no pinhão, que armazenavam em cestos submersos para preservação, além de caça e pesca que existia em abundância.
A organização social dos Kaingangs era complexa, com regras de higiene, demarcação de territórios e respeito aos recursos naturais. Eles acreditavam que a terra era sua mãe, e sua cultura estava profundamente ligada à mata das araucárias, que lhes fornecia alimento e abrigo.
Com a chegada dos bandeirantes no final do século XVII e a posterior ocupação por tropeiros e fazendeiros, os Kaingangs viram suas terras serem tomadas e seus recursos explorados. Os colonizadores desrespeitaram as demarcações territoriais indígenas, invadindo áreas sagradas e destruindo florestas para a criação de gado e agricultura.
Os conflitos eram inevitáveis. Os Kaingangs, que antes viviam em relativa paz, foram forçados a defender suas terras. No entanto, a superioridade bélica dos invasores e a falta de apoio do governo tornaram a resistência quase impossível. Muitos foram massacrados, escravizados ou expulsos para regiões inóspitas.
O Massacre da Fazenda Barra Verde foi um dos muitos casos da violência entre fazendeiros e indígenas. O trágico episódio da Fazenda Barra Verde, em 1913, ilustra a brutalidade desse conflito. Um grupo de Kaingangs, evadidos de uma reserva governamental, atacou a fazenda após anos de opressão e perda de suas terras. O massacre resultou na morte de membros da família Ribeiro, mas também desencadeou uma caçada implacável aos indígenas, que foram perseguidos e exterminados por fazendeiros armados.
A ironia cruel está no fato de que os Kaingangs, que já haviam sido confinados em reservas, eram vistos como “selvagens” pelos colonizadores, enquanto estes ignoravam as injustiças cometidas contra os verdadeiros donos da terra. O comissário do governo, que deveria proteger os indígenas, foi o mesmo que os envenenou, mostrando a hipocrisia do sistema.
Apesar da violência, os Kaingangs resistiram. Sua cultura e conhecimentos sobreviveram através de gerações, adaptando-se às circunstâncias impostas. Hoje, vestígios arqueológicos, como ferramentas de pedra e cerâmicas, são testemunhos de sua habilidade e conexão com a terra. Infelizmente, na região de Curitibanos não há aldeias ou remanescentes dos Kaingangs, ao contrário de outras etnias que ocuparam o território catarinense, como os Guaranis e os Xoklengs.
É essencial reconhecer que a história de Santa Catarina não começa com os colonizadores, mas com os povos originários que habitavam a região há milênios. A invasão das terras pelos tropeiros, bandeirantes e fazendeiros não foi um ato de progresso, mas de destruição de culturas e vidas.
A narrativa tradicional muitas vezes omite o sofrimento dos Kaingangs, retratando-os como meros obstáculos ao “desenvolvimento”. No entanto, ao olhar para sua história, vemos um povo que perdeu tudo: suas terras, sua liberdade e, em muitos casos, suas vidas, em nome de um projeto colonial que não os incluía.
Recontar essa história sob a ótica dos Kaingangs é um passo essencial para reparar as injustiças do passado e honrar a resistência dos verdadeiros donos da terra. Afinal, como dizem os próprios Kaingangs: “A terra é nossa mãe, e sem ela, não somos nada.”
Referências para o texto:
PIRES. Amory Ribeiro. Especial. Correio do Povo, 23 de janeiro de 1983, p. 8
POPINHAKI, Antonio Carlos. Kaingangs. Artigo científico para o acervo do Museu Histórico Antonio Granemann de Souza de Curitibanos, Santa Catarina.
Antonio Carlos Popinhaki é Bacharel em Economia Agroindustrial pela Universidade do Contestado. Graduado em Licenciatura em História pelo Centro Universitário UniFaveni. Pós-graduado em Auditoria e Perícia Contábil pela Universidade Católica Dom Bosco. — Professor, escritor, historiador e pesquisador de história.